O "Pico mundial do Trail"...
Uma semana de stress no pré
prova, em que reconheço que não estava nos meus melhores dias, estava como se
transparecesse aborrecido e amuado, mas simplesmente estava com receio do que
iria encontrar, no entanto, estava a curtir todo aqueles passeios e o espírito
do Trail quando nos encontrávamo-nos perto da linha de partida, sim, para mim
ainda apenas imaginava o momento da partida, mas nos meus sonhos mais
longínquos, a minha mente apenas imaginava de como seria o momento da
partida... Porque a realidade, foi bem diferente, muito diferente e nesse
momento, conseguimos perceber a famosa frase "Sommet Mondial du Trail"
(Pico mundial do Trail), não traduzido decentemente, mas o que fica melhor. Não
era só por estarmos a viver esta semana numa das vilas mais altas da europa, o
espirito do Trail é fora do normal.
O meu sonho estava perto de se
concretizar e até me arrepiava só de pensar que estava ali, que tinha
conseguido concretizar mais um objetivo e a possibilidade de terminar, apesar
de ainda ser remota, era o momento, emocionava-me só de olhar para aquele
pórtico... A minha oportunidade tinha chegado, o realizar de um sonho, tentar
concluir um Trail conhecido internacionalmente... Quando ouvíamos palmas
durante a semana, era a chegada de mais um atleta, por todas as ruas o
reconhecimento era geral e o espirito do Trail estava em qualquer canto e
esquina... As diferentes provas tinham iniciado desde segunda-feira, durante a
semana, era constante a festa...
O dia D...
Tinha chegado ao nosso dia, a
dúvida instala-se e na minha mente apenas tentava mentalizar-me que tinha
treinado para este desafio, no entanto devido à violência que tinha sofrido nos
Pirenéus, estava com receio desta altimetria (10.000 D+), seria mais uma prova
em que a dificuldade era um patamar superior.
Devido à pandemia este ano o UTMB
iria ter partidas diferentes, primeiro seria a partida da Elite, a hora da
partida estava agendada para as 17:30 e o Fernando partiria às 18:00. Mais uma tentativa de concluir o UTMB, em caso de sucesso, passaria
a ser o português com mais conclusões nesta prova.
Decidi mudar a estratégia no dia
D em relação a outras provas, após almoçar, fui dormir um pouco porque descanso
era palavra que não iria existir nos próximos dias, enquanto estivesse em
prova, duas noites, com o objetivo de não descansar. Mas nesta prova, queria
experimentar descansar 30 min durante a prova, para ver se rendia mais e se
conseguiria ganhar mais forças durante o desafio, apenas algo programado
mentalmente ...
Após o descanso, equipado, segui
para a linha de partida entrego o saco para a base de vida, sentei-me um pouco
ao sol para relaxar e quando anunciam a nossa entrada vou para a minha box após
fazer as despedidas habituais ...
Mais uns momentos de descontração
e animação, eu, não estava muito animado e não me estava a apetecer interagir
muito, estava no "meu canto". Entretanto entra o Fernando para a
outra box que iria partir 30 minutos mais tarde, os despedimentos habituais e
com as instruções da organização vamos a caminhar até à linha de partida ...
Ao chegarmos, mais animação, com
música, coreografia e afins, onde tu pensas que de facto esta organização tem
sucesso por esta envolvência toda, em qualquer momento até te sentes um atleta,
ahahah ...
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Partida da Prova |
Partida ...
Após alguns minutos de espera, já
depois das 17:30, dá-se a contagem decrescente para a grande aventura, aí vamos
nós, sem saber o que nos espera (eu pelo menos) era a minha estreia, ao cruzar
a linha de partida, começo a observar um mar de gente, a envolvência, o espirito, o apoio, um momento fantástico...
Após a partida rumo
a Saint Gervais, a primeira barreira horária ...
Correr por estas ruas estava a
ser uma experiência única, com as pessoas envolvidas de corpo e alma, com o
ambiente que estava criado... Desde de bandas musicais, a distribuição de
cerveja, à famosa frase "Allez Allez!", a ouvir gritos do meu primeiro
nome com o sotaque de várias línguas, mas quando ouves um português, ganhas vida! Depois de
uns km's, passas no primeiro abastecimento de líquidos (Les Houches), mais
música, mais vida, UAU, isto sim é o UTMB, espectáculo!
Saint Gervais...
Nesta primeira hora, nem sequer
bebi qualquer líquido, pelas emoções vividas, rapidamente bebo um copo de uma
bebida e sigo em frente, iniciávamos a primeira subida entre uma pista de ski e uma pista de BTT, estava bloqueada devido à prova, serpenteando serra acima,
parecia que não dava conta do tempo passar e já estava no pico da montanha, Le
Délevret, duas horas depois da partida e já somava com 14km agora seria em modo
de descida até Saint Gervais.
Tento me conter na descida, sem
acelerar muito, mas não é difícil me entusiasmar, sabia que podia
pagar a fatura mais tarde, vou abrandando e como sabia que a minha assistência
estaria no próximo abastecimento lá vou deixando rolar, cerca de 3h depois
estava no primeiro controlo horário, recuperando alguns lugares, no dia não
sabemos a nossa classificação é o que menos importa ...
Chego ao abastecimento, como algo
doce e algo salgado, abasteço as garrafas e sigo, na saída aí está a malta,
preocupados com o meu bem-estar, respondi que me senti-a confortável, decidi
tirar a roupa molhada, para entrar na noite, um pouco seco, depois de trocar a
roupa, sigo para o próximo ... sabia que o Fernando estava para
trás, mas não fazia ideia de como estava e naquela fase, eles também não...
Les Contamines...
Sabia que a festa ainda estava
para começar, embora, sempre que chegámos a uma vila, as ruas eram aglomerados de pessoas. Começava uma ligeira descida, nestes próximos 10 km,
seria sempre em subida constante mas ligeira, cerca de 500 d+...
A motivação e a curiosidade
estavam em alta, tinha sido acionado o kit de muito frio, mas achava que tinha
tudo para caminhar nas subidas e não ter frio.
No final deste trilho, estaria a
equipa de apoio pela última vez neste primeiro dia, cheguei depois das 22h, com
quase 5h de prova, vi os parceiros de trail pelos cantos a demonstrar já algum cansaço, eu
ainda me senti-a confortável e sabia que o Fernando estava a cerca de 10
minutos atrás, já tinha recuperado algum tempo, em breve passaria por mim, mas
mantinha-me focado e estava a correr bem, mais uma vez neste abastecimento, ao
entrarmos sentíamos um "bafo" de ar quente, sim
a tenda era aquecida ... Comi rapidamente, os rituais habituais e uma sopa
quente para animar o estomago, uma mistura de um caldo estranho e depois acrescentavas massa ou
arroz ... Despeço-me da equipa de apoio e continuo o desafio, sabia que a noite
não iria ser fácil ...
Refuge De La Croix de Bonhomme...
Os próximos 14 Km continuariam em
subida constante, até ao primeiro ponto mais alto da prova (2433 m), mas não o
mais alto. Estava ansioso por chegar ao topo, as paisagens estavam escondidas
só podíamos observar os frontais na subida e quando olhávamos para trás víamos
a serpente de luzes, pouco depois saíamos de uma zona florestal e passamos a um
descampado. Cerca das duas da manhã, já com o Fernando a tentar-me motivar, chegámos ao topo, mais uma etapa concluída, sinceramente, não me lembro de
muito, apenas de ter abastecido as garrafas numa fonte de água corrente sem
saber da qualidade, mas nestas altimetrias as águas devem ser boas ... Tentamos
perder o mínimo de tempo possível no abastecimento, seguimos para a empreitada
seguinte, 5 km de pura descida, numa descida técnica e com cerca de 1000 D- e o
próximo abastecimento seria o abastecimento de comida quente e a barreira
horária das 5h15 a.m. Os atletas que pretendessem poderiam dormir pela primeira
vez ...
Col des Pyramides Calcaires...
A descida terminou rápido,
sinal que ambos nos sentíamo-nos bem fisicamente, a prova já somava com 50Km,
chegámos a La Chapieux, com uma vantagem para a barreira horária de quase
3h, sinal que estava acima do meu receio, ficar barrado numa destas barreiras,
cenas passadas ... Ahahah ... Mas pode sempre voltar a acontecer, nunca sabes
quando o corpo te vai trair ...
Seguimos juntos, mas sabia que em
pouco tempo o Fernando se iria afastar, ele é bom nas subidas e eu acabo por
morrer, esta subida em particular não era fácil e iriamos voltar a subir, desta
vez em direção ao segundo ponto mais alto da prova (2516 metros), uma subida de
1.000 metros, são estas que me fazem valorizar os treinos que fazíamos na
Freita e arrepender por não ter sofrido lá mais tempo para agora amenizar esta
ascensão.
A subida foi longe de ser fácil,
a cada hora que ia passando a noite se tornava cada vez mais fria, tentava
produzir calor, mas não estava de todo fácil, tentava correr sempre que a inclinação minimizava, atinjo o pico cerca das 5:30, com frio, mãos
geladas e já estava em Itália, mudas de país e nem te apercebes, montanha é
montanha, sempre igual, nesta noite sentia-se o frio, cada vez mais intenso,
seguíamos para o ponto mais alto da prova (2563 m), uma pequena descida, nesta
zona o frio era intenso, as luvas que tinha adquirido não estavam a aprovar,
sentia as pontas dos dedos gelados, agarrava-me aos bastões, no meio de tanto
calcário, paro um pouco e tiro uma barra energética e um gel e continuo sem
parar muito tempo, passou-me pela cabeça em parar e descansar, mas decidi não o
fazer para não gelar e quando o sol estivesse mais alto de certo que iria
aquecer e despertar...
A paisagem e a imagem do nascer do sol a
refletir no manto branco, era espetacular, penso em tirar o telefone para
fotografar, penso que tenho de trocar de luvas que tenho outro tipo no colete, não devia de ter subestimado as temperaturas, o aviso e ter
confiado naquelas que tinha comprado como impermeáveis, enfim, mais uma aprendizagem. Finalmente, o terceiro
pico da prova é atingido, fico sem noção de onde estava pois um dos gráficos tinha
ficado em casa, tinha só a cábula dos tempos com as barreiras horárias e o que
tínhamos programado fazer ... Quando o sol "desperta" começa a sentir-se
o aumento de temperatura, uma descida com pedra solta, bastante difícil e
impossível correr. Sabemos que a dificuldade da prova nunca muda, do princípio
ao fim, mas atenua, principalmente neste caso que já tínhamos ultrapassado o
ponto mais alto, se seria mais fácil? Longe disso ...
Courmayeur...
O Fernando, já levava um avanço
de 15 a 20 minutos de mim, mas lembrem-se que partiu 30 minutos depois,
portanto o avanço era quase de 1 h, estava bem destacado. Eu segui-a na minha
luta, sento-me um pouco quando chego ao Lac Combal, uma zona plana, com uma
paisagem sobre o Mont-Blanc de qualquer coisa de fantástica, a vista do lado
Italiano, mas sei que não posso arrefecer.
Sinto ânimo com o despertar do
dia, em pouco tempo já estou novamente em prova, a regra é não perder muito
tempo nos abastecimentos ... Ainda a tentar aquecer e a apreciar a paisagem, são
coisas que não são muito compatíveis. Mais 4 Km e voltaria a subir até aos
2.434 m. a minha mente já se questionava se esta prova era só subidas...
Ahahahah, claro que não, mas antes das provas nunca pensamos na luta física e
mental que temos de enfrentar... Para começar o dia, cerca das 9h da manhã de sábado
uma descida até à base de vida, onde a equipa estaria lá para mais um apoio, seria para mim um marco importante,
pois considerava metade da prova realizada, sem imaginar ou saber o que poderia
acontecer no futuro.
Depois de realizar cerca de 9 km, em 1h30 chego à base de vida, o relógio passava pouco das 10h, entro no
abastecimento e apanho o "saco de vida", passo pelo pavilhão, abasteço de água e
continuo, estava procurar a malta, depois de comer algo, saio, percebo que estavam no lado no exterior, vou até lá, deito-me ao sol a saborear
cada momento, sabia que o Fernando estava por lá, mas não nos cruzámos, queria
descansar um pouco porque tinha acelerado na descida para ganhar tempo e
descansar um pouco, troco de meias, coloco creme e relaxo, cerca de 10 min,
acho que adormeci, pouco depois decido arrancar e digo metade já está ...
Não querendo interiorizar que em horas faltariam muitas mais do que o percorrido, mas isso agora não era importante pensar, despedimentos
rápidos e digo até já... Rumo à Suíça...
Gran Col Ferret...
Vocês não imaginam nos treinos
que eu e o Fernando realizávamos, o número de vezes que ele descreveu esta prova
com tal pormenor, acho que de tal forma até já me soavam os nomes e as
dificuldades, seguíamos então para o Refuge Bonatti, o senhor que quis edificar
um refúgio com a característica de estar situado acima dos 2000 metros de
altitude, porque o Refuge Bertone, se situava a 1980 metros, pormenores e
porque alguém queria ter o seu refugio mais alto do que o do vizinho? Ahahah .... Pormenores, apenas o que sei, foi a quantidade de palavrões que disse até chegar
ao refúgio do senhor Bertone em apenas 5 Km, porra, que aquilo subia mesmo e na
fase inicial, enquanto a sombra ajudava a progressão até se estava bem, essa desapareceu e sem
sombra tínhamos de trepar montanha, em "S" em "Z" ou seja
lá de que maneira foi, mas sempre que pessoal passava por nós, palavras de incentivo
não faltavam e sempre tentavam pronunciar o teu primeiro nome, acho que o
numero de vezes que disseram o meu nome somado nesta prova, dá para todas as
outras em que participei e que raramente ouvi. Opinião pessoal, não sei se é
por ser o UTMB, mas o espirito para este desporto em outros países é mais
reconhecido do que no nosso Portugal, eles motivam e fazem de tudo para que
continues motivado ...
O relógio já marcava 19h de prova
quando alcanço o tão esperado pico, uma alimentação rápida e a Coca-Cola
que tanto rejeito fora das provas, aqui preciso de vários "boost's"
energéticos, ainda tinha de subir mais um pouco, o que parecia um planalto, é
mais uns trilhos de sobe e desce com pouca altímetria, mas já qualquer subida
cansa ... Ahahah ...
Sempre a esforçar-me nas subidas
e nas descidas a tentar conter-me para não dar o "estouro" muscular
ou mesmo rotulíano, com receio do que poderia acontecer nos próximos km's,
tinha um objetivo mental que seria atingir os 100 km, entre as 24 e as 25h de
prova, se assim fosse estaria melhor do que nos Pirenéus, ah, de preferência
sem bolhas. Apareceu uma na parte inferior do calcanhar, algo que desvalorizei
muito cedo e que de facto não me estava a chatear, o objetivo seria aproveitar
o máximo o dia para depois perder tempo para lidar com a grande dificuldade
noturna...
Em Arnouvaz, tento apreciar as paisagens, uma diferença da construção das casas, as pessoas calorosas
em qualquer país, ou parte da prova. Estava cansado, corro para a câmara me filmar mas quando
entro no abastecimento e depois de recarregar as garrafas, sento-me por uns
minutos e aprecio quem se sentia pior que eu, as dores iam surgindo e eu não
seria diferente, rapidamente penso que tenho de seguir para não arrefecer. ingiro algo sem perder tempo, entre doces e salgados, rejeito a espécie de sopa que eles têm e
contínuo ...
A curiosidade não nos larga e depois de uma
estrada com uma ligeira inclinação entre alcatrão e terra batida encontramos um
descampado, com muitas montanhas à sua volta, penso: "Uma destas vais ter de
subir". Continuo a tentar trotar e a caminhar, mal me deparo com uma montanha,
íngreme acentuada e que vejo o pessoal já lá bem no cimo, de tão pequenos que
se avistavam pareciam uma espécie de sombras sem conseguir discernir as cores
ou o sexo, ou fosse o que fosse. Umas formigas, normalmente usado no sentido
figurado e no sentido inverso, porque a formiga seria eu que ainda me
encontrava na base, a iniciar a ascensão. O último pico mais alto da prova, íamos subir
até aos 2.529 metros. E caso se estejam a questionar como é estar a esta
altitude, sinceramente não senti grande diferença, acho que estamos sempre
cansados, mas talvez como a ascensão é lenta, o nosso organismo se vá adaptando,
ou mesmo a diferença não será assim tão grande ... Em resumo, depois de
algumas microparagens na subida e duas horas depois de realizar cerca de 5Km,
consigo atingir o topo com 24h de prova, km 104, estava na fronteira com a
Suíça, sem qualquer indicação, seria a descer até La Fouly, onde estariam mais uma vez a
malta de apoio, quando assim é, a motivação aumenta e deduzi que o Fernando
estaria bem destacado, pois as subidas atrasam-me ...
Plan de L'Au...
Depois de 10 km, ao chegar a La
Fouly, entre muitos aplausos de coragem e de força por diversas pessoa em
vários idiomas em grande força o idioma francês, vejo um grupo de jovens que há
passagem de cada corredor entre a mistura de gritos e ondas iam animando a
nossa passagem, eu ao chegar, não fiquei indiferente e tentei fazer uma espécie
de uma onda mas as dores já não permitiam que me baixasse tranquilamente, mas
lá entrei na brincadeira ... Fiquei emocionado, feliz, tinha conseguido mais
um objetivo e sentia-me bem, um pouco de ânimo, antes de entrar a noite ... Estou pouco tempo no abastecimento, como
algo rápido e como ainda tinha reservas continuo, siga... Próxima
paragem, seria Champex-Lac...
Estava a meio de uma descida de
cerca de 20 km, estava a conter-me, estava satisfeito com o resultado até
ali, o próximo abastecimento fica a 14 Km... Maioritariamente a descer e uma
subida na parte final, com cerca de 500 D+... O sono não estava a tomar conta
de mim, tentava acelerar e sentia-me bem, neste abastecimento reencontro a
malta, fizeram um serviço de mordomia, mais uma sopa, porque estava quente, mas
já era difícil de ingerir, pão, queijo e chouriço, já estava a ficar cansado
daquela alimentação, mas já temos estratégia para uma próxima aventura e caso
tenhamos equipa de apoio ... Ahahah... Pondero em dormir, mas eram apenas 23h da
noite, não ia fazer com que a malta ficasse ali a apanhar seca, depois de
comer, sigo e sei que o Fernando vai bem apenas com umas dores musculares....
Despeço-me de todos e digo-lhes: "Vemo-nos na meta",
pois começo a acreditar que é possível... Contínuo para enfrentar a segunda
noite...
Após abandonar o abastecimento,
passamos junto de um lago, enorme, só imagino que de dia a paisagem deve ser
espetacular, não se consegue apreciar muito, mas o facto de estar a correr no
alcatrão está a ajudar para aquecer e já tinha trocado de luvas como tal não
estava a pensar que iria apanhar muito frio...
Esta "pernada", seria a
primeira subida das três que faltavam, perco um pouco a noção desse pormenor, a
distância até ao próximo abastecimento eram mais 12 km, seria cerca de metade a
subir e o restante em modo de descida. O trilho e a subida tornou-se monótono e
duro com tantas curvas e tanta pedra, imaginem a subir um monte
de pedras, onde claramente era possível concluir que seria um curso de água,
mas nesta altura do ano, seco, a minha simples conclusão era que tinha
subestimado esta subida e estava a ser bem difícil, o cansaço acumulado e
pedras que mais pareciam degraus de grandes dimensões ...
Sinto ânimo quando ao chegar a
uma aldeia, estava um casal muito simpático com um abastecimento improvisado ou
assim parecia, já era domingo, um mini abastecimento e nada faltava, desde o
chá quente, café quente, uns bolos, fruta, água e coca cola, sento-me um pouco
e rapidamente percebo que será alguém ligado ao Trail, com sapatilhas da mesma marca que as minhas, pode
não ser corrida, mas caminhada seria certamente... Penso imediatamente, pois,
não faltam aqui trilhos para caminhar e "ganhar" vida ... Ahahah...
Agradeço no meu francês barato, continuo...
Depois de estar praticamente a
chegar ao abastecimento, começo a sentir algum incomodo intestinal a sentir que
isto não ia correr bem, já devia ter aprendido a ter comido algo para parar os
intestinos mais soltos, porque a alimentação deixa muito a desejar, acho que
vou complementar o meu saco de SOS com mais uns comprimidos para estas
ocasiões, vou fazendo algumas paragens, não estava fácil, além deste pormenor o
sono começava a dar sinais...
Ao realizar a subida e ao chegar
ao pico da montanha, vejo uma placa que informa que o próximo abastecimento (La
Giète) se situa a cerca de 1,5 Km, a mente começa a vaguear e apesar de saber
que na montanha, em particular nesta zona, estariam vários bovinos, com os badalos
a ouvirem-se no silêncio da noite, ao passar a placa e repentinamente, um bicho destes estava deitado, quase ao meu lado, escuro no meio da noite, ao surgir a minha
presença o animal roda a cabeça, o famoso badalo toca e apanhei um susto, mas
que susto, depois de ver tantos avisos nunca sabemos se estes atacam ou não,
rio-me sozinho e continuo...
Iniciámos a descida e pouco
depois começamos a ouvir música, parecia que a animação era grande, era uma
festa noturna, começo a perceber que tínhamos um pequeno "S"
acompanhado com uma ligeira subida e seria o abastecimento, mais uma etapa
conquistada e a pensar em descansar, o relógio marcava 3 a.m., de domingo...
Mas quando entro no abastecimento a desilusão foi grande...
O espaço não era aquecido, era
uma cabana de gado, diria uma mini vacaria de montanha, uma construção antiga. O pessoal lá dentro estava animado, principalmente a médica que não parava de
dançar, reparo ao pormenor e ainda se vi-a vestígios de bosta de animal por
todo o lado, não era camada, apenas uma pequena película... Ahahah... Decidi,
não é aqui que vou dormir, pedi um café, estava frio, porra, este abastecimento
está a ficar aquém dos anteriores, rapidamente continuo e em modo de descida,
tenho de parar outra vez, mais uma volta à tripa, realizar a atividade à
caçador, estica os músculos mas nesta fase é uma violência ... Ahahah... Volto ao trilho, nesta fase começamos a fazer a contagem decrescente...
Vallorcine...
O sono ataca em força e tomei a
decisão de quando chegar ao abastecimento de Trient iria descansar, estes 5 km
de descida, foram tipo "zoombie" entre fechar os olhos e ir trotando,
estava a ser complicado levar a melhor e impor um ritmo, as noites custam
sempre, mas as horas das 3 às 6 a.m., para mim são as mais violentas, em modo de descida,
reduzi bastante a velocidade não tinha andamento, não consegui-a acelerar,
demorei praticamente duas horas para concluir mais esta etapa, não fazia ideia
de onde ia o Fernando ... Ao chegar ao abastecimento, entro dentro da tenda, um
bafo de ar quente se sente, não tinha tido frio nas mãos, as luvas tinham
aprovado, no entanto as calças, deixavam passar o frio. Quando pensas que tens
o equipamento adequado para uma prova nestas altitudes, concluis rapidamente
que afinal, falta sempre algo... Pouso o equipamento numa mesa a um canto,
rapidamente vou outra vez à casa de banho, volto ao meu lugar e vou comer algo
e abastecer as garrafas, coloco o despertador para 30 minutos, pouso os braços
em cima da mesa e quase que repentinamente adormeço profundamente, consigo deixar
de ouvir a música e as pessoas ... 22 minutos depois, acordo com o coração
acelerado, o receio de não acordar era enorme e "perder" a prova, agora que o final se aproximava, tinha chegado com 3h antes da barreira
horária... Cerca das 6 a.m. estava equipado e pronto para sair, tinha de enfrentar
a próxima subida, curta e só pensava em chegar a Vallorcine, depois
disso, as dificuldades maiores estavam para trás... Já somava 143 km... Saio
com atitude e com alguma energia renovada ...
As subidas cada vez mais se
tornavam demoradas, chego a Les Tseppes, 1h30 depois para percorrer cerca de
3,5 Km, o meu ritmo tinha baixado muito, de uma forma geral, já só faltava mais
uma subida, depois estaria novamente em França, sinal que o final se
aproximava, as memórias destas zonas até hoje são escassas, o nascer do dia
dava outro ânimo, quando sentes o corpo a dar de si, com dores em vários locais
e de repente tudo desaparece e renovas as energias (aparentemente), o querer e a
força mental impera neste momento, sem perceberes como tudo deixa de doer e
estás em prova com muita vontade de concluíres mais um objectivo ... A descida
estava a dar "pica", entre colocar os bastões e dar uma passada
estava a conseguir acelerar, a dada altura o bastão direito, crava no trilho e
sem conseguir tirar a tempo, a minha anca bate e dou um mini grito, ouvi o bastão a
estalar e penso, porra, um bastão partido nesta fase, que caraças ... O
companheiro de prova atrás de mim apercebeu-se e rapidamente em inglês
pergunta se estou bem, respondo que sim, tenho de pegar no bastão em outro
local, que rapidamente percebo que não é prático e sigo apenas com um bastão ... Ao chegar a Vallorcine, cerca das 9:30 da manhã
de domingo, estava frio, uma zona que fica num vale e o sol demora a
"invadir" a vila, preparo-me para a última subida, 10 minutos depois
estava de volta ao trilho, já sem calças, apenas com os calções, mas ainda com
as térmicas vestidas, acho que o tempo que parei no abastecimento foi apenas
para tirar a roupa quente, eu já conhecia esta parte e sabia que a subida se iria
realizar com o sol em força ... Após sair do abastecimento, vou correndo, para
aquecer, para produzir calor, poucos km's depois estava em modo de subida, depois de
passar a estrada e alcatrão, mais um grupo de pessoas a aplaudir, a minha mente já nem
sequer pensava em desistir ...
La Flégère...
Ao iniciar a subida, o sol
começou a aquecer em força, tal como eu esperava, tive de parar à sombra,
retirar a roupa térmica e vestir a t-shirt que queria terminar, mais fresca,
depois de equipado, continuo com atitude e focado, o objetivo era chegar
ao topo da montanha, mas a curiosidade não permite que fiques com os olhos no
chão e vou olhando para cima e observava os outros companheiros, já bem lá em cima, ia tentado
marcar um ritmo constante, mas a cada curva parece que as forças se iam,
ansioso por chegar ao destino. Quando já estou no planalto, tenho de fazer mais
um desvio do trilho, acho que estava a ficar desidratado, tanta água que
saía ... Ahahah ...
Tinha ficado sem água,
a subida tornou-se quente e os meus cálculos falharam, no topo, temos o
controlo horário, uma espécie de picagem, sem barreira horária, pedi água e sou
informado que seriam mais 3km até La Flégère e que lá tinha, um pouco chateado,
respondi que já estava sem água a algum tempo ... Sou interpolado por um senhor,
que caminhava na zona e me pergunta se quero água, respondo logo que sim e que
era muito simpático da sua parte, aceito mas não tenho coragem de encher a
minha garrafa de meio litro, bebi 250 ml mais ou menos, agradeci de coração e
segui, ele insistiu para beber mais, vos confesso claro que apetecia, mas não seria
justo e assim já dava para gerir...
Continuo, um trilho meio técnico
com algumas pedras, descer não estava fácil de todo, cada pedra parecia um
degrau enorme, mas tentava não perder muito tempo, depois de ser ultrapassado
por alguns atletas e algumas pessoas que apenas passeavam, chego à penúltima
barreira horária, 165 km com 44h de prova, bebi bastante água, reabasteço as
garrafas e sigo para a meta, sabia que seria sempre a descer, mas logo a
primeira descida com poucos metros, tiram-me a pica de tão inclinada que
era, ficas na dúvida se consegues descer devagar ou se escorregas e cais uns
bons metros, depois daqui, eram cerca de 7km, sempre a descer ... Com os pés massacrados, não era fácil ...
Finalmente Chamonix...
Durante a descida, encontro malta
portuguesa, um trio, iam acompanhando o Paulo e motivando, por sua vez entrámos
em conversa e iam explicando o que faltava e como eram os trilhos que íamos
encontrar, estávamos com um avanço da barreira horária de cerca de uma hora,
era só não "morrer" na descida ... Eles acabam por impor um ritmo mais
forte e vão mais para a frente, começo a fazer jogos mentais, a pensar nos meus
filhos, a pensar que tinha de terminar aquilo, ainda com um receio à flor da
pele de não conseguir, saber que a malta estava algures à minha espera,
talvez o Fernando já tivesse concluído, saber que muitos acompanharam esta
prova no final de semana para saber como eu estava em prova, tinha recebido
mensagens de força e apoio, depois de pensar nisto
tudo e concluir que nos Pirenéus tinha concluído a prova com os pés numa
lástima, aqui só estavam massacrados de tantas horas, não sei onde fui buscar
forças, só sei que tinha de correr, acelerei, não podia fechar os olhos, mas
podia cerrar os dentes, se em Val D'Aran, não adiantava serrar os dentes, aqui sim, siga para a meta! Ahahahah ... Pouco depois troco palavras com um
português que subia em sentido contrário, eu já estava cansado de descer e sou
informado que ainda faltam cerca de 2 km ... Respondi que já estava saturado de
tanta descida, mas finalmente tinha chegado a Chamonix, já faltava chegar ao
tão desejado pórtico ... A meta estava perto!!!
O prazer da conclusão...
Entro numa estrada plana e já
senti-a o cheirinho à avenida da conclusão da prova, aquela zona que andas a
passear uma semana inteira e não sabes se consegues ali chegar, mas que
gostarias, imaginas a sensação fantástica que irás sentir, a emoção, de poder
gritar, porra, consegui!!! SIIIIMMMM...
Deparo-me com uma construção a
servir de ponte numa espécie de andaimes, os últimos degraus, ao chegar ao
topo, fico emocionado, estava feito, as pessoas aplaudem efusivamente, sinto-me
um herói, elas faziam-me sentir assim. Depois de descer os degraus, reconheço a
avenida, ao lado do rio, começo a chorar desalmadamente sem me conseguir controlar,
o sonho estava conquistado, tudo me ocorre na mente, todos os momentos de
sofrimento e grito para dentro: "Fosga-se, está feito, consegui!!!"
As pessoas aplaudem e eu vou agradecendo em Francês, eles apercebem-se que
estou emocionado e comentam, continuo num trote dentro do que era
possível, mais uma curva, o número de pessoas vai aumentando à medida que te
aproximas da meta, depois de mais uma curva, passo a empunhar a Bandeira
Portuguesa só quero cruzar a meta, ainda faltam uns metros para chegar, não controlo as lágrimas, o choro, pareço uma criança emocionada
quando parece algo que quase seria impossível de alcançar, mais umas lágrimas e com os olhos cheios de
água, tinha de dar mais
uma voltinha e depois cortar a meta, com a bandeira em punho, aproximo-me da meta, estou a curtir o momento, o prazer da conclusão, o prazer
da superação, algo que só sentimos quando somos levados ao limite e ao extremo.
Será das nossas capacidades? Eu penso
que nós não sabemos, nem conhecemos quais são os limites, é tudo uma questão de
treino e teste, este teste foi superado ...
Após começar a ver o pórtico,
oiço gritos de portugueses, emotivos e com palavras de apoio. Ao chegar ao
final, o speaker grita o meu nome "Manuel Carlos de Portugal", a
terminar mais um desafio, mais uma prova, mais uma loucura ...
Decidi, voltar atrás e com a
bandeira em punho cumprimentar todo o pessoal que está por ali a dar apoio a
quem chega, não fazem ideia, durante a prova como esse apoio foi tremendamente
importante para relativizar o que custa, termino a prova com o tempo de
45h34m41s, na posição geral 1337º e no escalão V1H 598º ...
Logo após cortar a meta, agradeço
ao nosso pessoal todo o apoio e encontro o Fernando que me dá os parabéns por
ter concluído a prova, a parabenização é recíproca e estava feito, brinco com
ele a dizer com que então a prova era mais fácil que os Pirenéus, que violência! Mas está concluída. A foto já com o colete de finisher do UTMB... Sinto-me morto...
O Fernando concluiu a prova em
40h57m49s, ficando na posição 693 da geral e em 91º no escalão V2 H, consegue a
sua quarta conclusão do UTMB, tornando-se assim o português com mais conclusões
neste desafio...
Conclusão da prova...
Esta prova de facto torna-se uma
paixão, pela envolvência das pessoas, pela organização da prova, desde os
trilhos, aos autocarros para quem acompanha a prova, é de facto o topo de todas
as provas, os locais são lindíssimos uma fotografia de telemóvel, não
consegue transparecer o quanto a paisagem é espetacular ... Aqui, vale a pena
correr e tirar o máximo partido desta prova e dos trilhos, mas não facilitem,
porque a dificuldade está muito presente ...
Sabem o que vos digo? Prometo um
dia voltar, garantidamente, para a
realização deste desafio, talvez com ainda mais preparação, física e mental,
mais experiente e não facilitando o pouco conhecimento que tenho, mas ainda
continuo a aprender a cada prova e podemos melhorar sempre: "Nunca melhor
que ninguém, apenas melhor que ontem!"
É aqui que me sinto vivo, temos
de nos testar e criar objetivos e não há impossíveis, existem algumas
dificuldades que podem ser superadas ...
Agradeço a toda a equipa que deu apoio presencial e a outra equipa que à distância foram enviando mensagens e
boas energias, que também iam sofrendo por mim...
Um beijo especial para os meus
filhotes, apesar de terem orgulho no louco do pai, sofrem como uns desalmados
aquando de cada desafio...
Para terminar, ainda não atingi o
meu limite, continuarei me desafiando, pouco a pouco, a recuperação está a ser
difícil e lenta, mas já se corre ... Ahahahah
Para terminar, um agradecimento,
com enorme gratidão ao meu amigo desta aventura, Fernando Mendes, obrigado por
toda a paciência e todos os treinos que realizamos juntos, com as nossas
aventuras pela Freita, mas precisávamos de ter realizado mais ... Ahahah ...
"Lobo Solitário" nos trilhos ... Até breve ...
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