Val D'Aran By UTMB - VDA - A Batalha Final

 

Val D'Aran By UTMB - Torn Dera Val D'Aran 

A Batalha Final 

A descrição desta prova iniciou neste primeiro artigo, na chegada e nas pequenas visitas que realizamos por Val D'Aran.
Depois decidi iniciar a descrição da prova neste segundo artigo e aqui irei descrever a fase final da prova, para mim, uma verdadeira batalha...


Salardú...
    Saímos da base de vida, uma troca de diálogo no planalto e apesar de tudo, íamos com um bom tempo de prova, o Fernando teve de ser assistido, na sequência da "carolada" que deu na passagem da mina, uma risota ele a contar que estava a tentar ler o aviso e pimba, acabou por bater, "Nunca mais lei-o nenhuma placa"... Ahahah... Momentos que ficam para mais tarde recordar, ele porém já vai bem destacado com a pontuação na prova, porque "3 pontos são 3 pontos"... Ainda no planalto, observamos uma manada, a pastar entretidas com as bandeiras de marcação da prova, entre o coçar e o arranhar, lá iam tirando a sinalização, mais uma brincadeira e seriam os vassouras que já estariam a tirar as marcações, vocês sabem que estes bichos, por vezes nos comem as fitas e ficamos meio desorientados, mas era de dia e conseguíamos ver bem as hastes das bandeirolas, os carros passavam na estrada e buzinavam, acenavam-nos fosse lá quem fosse, mas uma forcinha dá sempre ânimo. 
    Ao ficarmos perto da estrada, passou um atleta que nos avisa que o pior estava para vir, tinha realizado uma prova mais curta, penso que a PDA (Peades D'Aigua) a prova dos 55 km,  o caminho na subida  e descida para Colomèrs, era bastante técnico e duro, nós agradecemos, mas segundo o que tínhamos tentado pesquisar o terreno pior teria ficado para trás, desvalorizamos e o comentário entre nós em tom de brincadeira, foi de desvalorizar e dizer nem imaginas o que já passamos nos primeiros 65k, não acredito que seja pior do que aquilo, lá continuamos e desconfiávamos que a equipa de apoio estaria no próximo abastecimento, essa era a motivação, mais uma descida, os meus pés depois da última intervenção iam melhor, mas não sabia se o conforto seria até à meta...
    Ao chegarmos a Salardú, mesmo no abastecimento, aí estava a malta, os gritos de apoio, a buzina soava bem alto que bem que sabia ter aquela equipa comigo, o relógio marcava 21h, estávamos em prova à cerca de 27h, sem descansar, sempre a rolar, abastecimento das garrafas, petiscar isto e aquilo, e estávamos prontos para seguir em frente, beijos e abraços, mais uns gritos de apoio e aí vamos nós, para a segunda noite...

Banhs de Tredòs...
    Mais um desafio com 800 metros de acumulado positivo, apesar dos pés estarem a dar de si, estava confortável fisicamente... Ao sairmos do abastecimento, o apoio de todas as pessoas que passávamos era inevitável, sempre umas palmas e umas frases de apoio, sentia-me enorme, mas o objetivo ainda estava longe. Encontramos malta portuguesa que tínhamos estado a dialogar nos nossos passeios pela aldeia, agradeci e sempre a rolar, vários nos diziam que era preciso ter cabeça, ou seja, a prova a partir dali tinha de ser muito bem gerida, para não entrarmos em desespero ou falência física...     Pouco depois parámos para um café rápido, num estabelecimento na beira da estrada, nem deixei arrefecer, parecia que estava com sede de café... Uma pequena troca de palavras com o pessoal, admirados quando tentei explicar no meu "portunhol" que não iriamos dormir, pensava eu... 
    Ao contrário do que estava há espera, este café tirou-me a "pica", enfrentamos o inicio da subida, a noite domina o trilho, frontal ligado, deixo de ver o meu companheiro de prova e fico meio baralhado com o trilho, era estranho, pela primeira vez parece que as marcações estavam mal realizadas, por entre árvores, sempre a subir numa espécie de Zig-Zag, o corpo começava a ceder e entrava a força mental necessária para chegar ao próximo abastecimento, sem perceber muito bem como, tenda há vista, reconheço a zona, penso, menos uns km's, esta última descida não tinha sido fácil, a coisa estava a complicar. Descanso, como uma sopa, reconforto bem o sistema, decido vestir as calças de corrida, estava a ficar fresco e porque iria enfrentar a segunda noite, atingir o pico mais alto da prova, mais valia prevenir. Depois de tudo reabastecido, direciono-me para a saída da tenda em direção ao trilho, mais umas palmas e mais umas frases de apoio, gritavam entre palmas "Campeón", até rejuvenesci... SIGA!!!

Colomèrs...
    Ao iniciar o trilho, ainda por cima esta pernada com 15 km, ainda não tinha interiorizado a dificuldade, no meio da noite, não iria ser fácil, pensava que sabia o que me esperava... Pouco depois de sair do abastecimento, modo de subida "ON", as subidas apesar do cansaço até se faziam sem parar, mas a noite não estava a ser amigável, uma noite bastante escura, terreno de pedra, sentia-me desorientado e sem perceber onde estava, continuava a subir, por pedra, poucos planaltos, poucas descidas, não estava ninguém perto de mim, olhava ao meu redor e ao longe consegui-a ver alguns frontais, subiam, pouco depois já desciam, aqueles frontais estavam a baralhar-me os pensamentos, a minha orientação estava pela "hora da morte"... Surge alcatrão, seguido de novamente trilho, em pouco tempo estava ao pé de um lago de água, ao olhar e rodar a cabeça, ao longe avisto uns barcos, ancorados, era a imagem que me surgia, mas quando me aproximava eram apenas pedras, as alucinações estavam a surgir. É normal, não se preocupem que não estou a ficar senil... Uma imagem de  alguém esperando a nossa passagem, seria apenas um monte de pedras, nesta zona tinham construído vários montes, quase que parecia um aglomerado de pessoas, a escuridão e o cansaço criava estas imagens... Numa zona, avisto algo que parecia uma tenda, fico baralhado, no meio desta esuridão, não pode ser... Pouco depois os flashs disparam e vejo alguém no meio da noite a vaguear, calma que é o fotografo...Ahahah...
 
Na escuridão...

    Com tanta subida e descida, volta e mais volta, contorno das montanhas, ora aparecia um lago, ora já estávamos em subida, olho ao meu redor, avisto novamente um frontais a descer a montanha, completamente perdido, mas no trilho, já não sei se já tinha realizado aquela parte ou se ainda a teria de realizar, não está ninguém perto de mim, no entanto, pouco depois passo por alguém que se encontrava a dormir no trilho, no meio da montanha, daqui em frente o número de atletas deitados iria aumentar... As horas iam avançando, perco a noção do tempo, mas sabia que não estava longe de amanhecer, os pés iam-me lembrando que existiam e davam sinal, quando tinha de descer a sensação era uma mistura de agulhas e facas nos pés... Não sei as horas concretas, mas a dada altura sinto-me cansado, com os bastões ao alto, pouso a testa sobre os bastões, em pé, para descansar, malta quase que caía para o lado, o sono estava a convidar para dormir, seria, cerca de 1h30 da manhã, ao "acordar", volto a sentir-me perdido, ao ter-me desequilibrado perdi o sentido do Trail, levanto a cabeça e falo para mim "Tens de te movimentar" começo a correr, quando surpreendentemente avisto um atleta em sentido contrário, pergunto-lhe se tem a certeza da direção, em inglês, ele diz que eu é que estou mal, aguardo, tento me localizar e avisto um frontal na mesma direção, ok ok, já ia a correr no sentido oposto e não convém ir no sentido da partida, pois era capaz de demorar muito mais... Ahahah... estava no km 143, marcava o meu relógio, mais ou menos...

    A subida continuava, depois de tantos km, ia mais parado do que em movimento, o corpo cede e desloquei-me um pouco para não impedir a passagem dos atletas, coloco-me em posição fetal, pouco depois estava a dormir, não tenho noção de quantos minutos passaram, talvez 5, talvez 10, 20, alguém passou e perguntou se estava tudo ok, talvez devido há minha posição, seria mais a posição de quem não se sente bem, respondi "Tudo ok, estava a tentar dormir" ele pede desculpa e seguiu, os km's quase não somavam, era o desespero, só queria que nascesse o dia, para ver se "acordava"... Levantei-me e voltei a tentar correr a subida ainda não tinha terminado, estávamos em direção ao ponto mais alto da prova, ops, parece que já disse...Ahahah

    Talvez cerca das 4h da manhã, não consigo precisar, decidi parar, uma soneca ia fazer bem, estava sem energia e com a mente "vazia" e sem conseguir pensar, procuro um lugar atrás de uma rocha abrigado da aragem fria que se fazia sentir, as calças nesta noite estavam a ajudar a manter-me quente, pois a velocidade era nula logo a produção de calor era zero, tiro o colete para servir de almofada, com tanta tralha que tinha de transportar devia de servir para algo, deito-me e tiro o telemóvel para colocar o alarme para daí a 20 minutos, tinha de recuperar forças, malta, fiquei com o telefone na mão, frontal ligado e adormeci... 
    Até hoje, não sei quantos minutos dormi, mas acordo desesperado porque tinha a sensação que tinha dormido 2 a 3 horas, acordo com o amanhecer, visto o colete e começo a tentar correr, ao olhar para trás avistava uma "cordilheira", estava rodeado de montanhas, na parte superior uma cor laranja forte, penso em tirar o telemóvel para fotografar, mas depressa continuo a minha luta, estava a sentir-me esgotado, a luta da subida continuava, o sol ia nascendo e parecia que ao mesmo tempo me ia despertando, chego ao ponto mais alto da prova, um controlo de passagem em Coth de Podo, nomes esquisitos estes, mas deve ser Catalão,,, Ahahah... Só pode. Eram 6h da manhã, 36h de prova, 135 km, o meu relógio marcava cerca de 147 km, feitas as contas, demorei 6 horas para percorrer 10 km, ok, aceito, inicio a descida, mas as dores aumentavam, caramba!! Agulhas, alfinetes e facas, não falando na temperatura dos pés...
    Enfrentava uma descida de cerca de 5 km's até ao abastecimento de Colomèrs, as bolhas e os danos nos pés, não estavam tranquilos e não me estavam a deixar impor um ritmo de recuperação de tempo, a cada passada era uma dor, senti-a o pé esquerdo mais dorido, o terreno era incerto, com os tufos de "pasto". Por aqui, talvez pelo ambiente, seria normal este tipo de vegetação, mas estava cansado deste cenário, tentava me certificar que a planta do pé pousava em terreno mais direito sem grandes oscilações, não estava fácil... Sabia que a chegada ao abastecimento estava perto, mas cada km, parecia uma eternidade...

A chegar a Colomèrs

    Já não vejo o Fernando, mas como sabia que eu estava lento, provavelmente, já levava um bom avanço, não estava a conseguir recuperar nas descidas, chego ao abastecimento cerca das 08h da manhã, percebo que demorei 8h para fazer 15km, as barreiras horárias já estavam mais perto não podiam existir distrações, pelo nosso plano a esta hora tinha de estar em Ressec, acho que perdi cerca de duas horas neste segmento.

Até ao último abastecimento (Santet Escunhau)...
    Após chegar ao abastecimento, sabia que a temperatura ia aumentar, tiro as calças, reabasteço as garrafas, mais umas mordidelas aqui e acolá, fruta e rumo a Ressec, estava a ficar ansioso por terminar a prova, a dureza já tinha terminado, só faltava colar os pedaços que sobrava do corpo e terminar aquela porcaria, é o momento de raiva e revolta, para que me meto nisto, ia caminhando, correndo, chorando com a mente a vaguear, não continha as lágrimas, porra que isto é doloroso, ia ignorando as dores, vou confessar-vos, imaginava-me uma águia e interiorizava, com um discurso interno: "Os pés não doem!"; "Vais a voar, mal pousas os pés!"; "Não está a custar nada!" "Está quase a terminar!". "Corrinhando", já tentava nem olhar para o relógio, uma descida por meio de floresta, excelente, fico mais animado, quando chego ao abastecimento, sou recebido como um campeão, ou melhor Campeón, estamos em Espanha malta... Ahahah... As palavras de incentivo e motivação não faltavam em várias línguas, tentava responder no mesmo idioma, acho que até respondi a portugueses em espanhol... Ahahah.. Já não caminhava direito, olhavam para mim com uma mistura de sentimentos entre a pena e a admiração.
    Como sabem, quando se chega a um abastecimento a primeira ação é abastecer as garrafas. Tudo abastecido e neste abastecimento temos direito a pizza, não deixo passar ao lado e como algumas fatias, sentei-me um pouco e uma pessoa da organização mete conversa comigo para saber a minha nacionalidade, volto a falar em "Portunhol"... ahahah.. Tuga que é tuga fala qualquer idioma. Dá-me alguns conselhos e diz-me que só faltava uma subida final, que poderia ser um pouco dura, tínhamos de ter cabeça para chegar à meta, bastava aquela subida e estava feito. Mentalmente, perguntava-me, mas já estou a delirar, já não ouvi isto antes? Já não chega de subidas? Consulto a nossa cábula e de facto, os próximos 8 km até ao último abastecimento, tinha cerca de mais 800 d+, agradeço o apoio e as palavras levanto-me para seguir caminho, Uiiii, tanta dor, onde apareceu isto?  Vá, basta aquecer e estás de volta, interiorizo, tinha estado parado cerca de 10 minutos, agora não podia "arrefecer" mais, já estava a custar...
    Ao sair deste abastecimento as pessoas são incansáveis com o apoio, as palmas e as palavras de incentivo, parece que por estes lados motivam mais a malta e talvez liguem mais a este tipo de prova. Ou será que estão mais ligados ao desporto? Provavelmente, são familiares da malta que se encontra em prova... Talvez esteja exausto, não sei, mas sabia bem ouvir...
    Surge a subida, malta, vou resumir, apesar de estar cansado a subida não me era terrível, estava curioso com a subida, íamos serpenteando por meio de floresta, parece que estava a viver um Dejá Vu, não sei, mas aquele sitio parecia-me familiar, não sei se já terei corrido em outra prova com uma paisagem semelhante, não sei se seria do cansaço porque neste momento, mentalmente, até me senti-a bem, mas a cada "virar da esquina": "Caramba, já aqui estive"; "Como é possível?" Ia-me entretendo a pensar qual teria sido a prova, não me lembro, o "tico e o Teco" mental, discutiam e não chegavam a acordo... Ahahah... O objetivo era manter a mente ocupada para não pensar nos km's e muito menos olhar para o relógio... Não vos consigo precisar, mas passado algum tempo, inicio outra descida para o último abastecimento, é verdade, já referi o ÚLTIMO ABASTECIMENTO, muitas vezes, estava ansioso pelo término da prova e este seria o "Marco" final, a descida não foi fácil de todo, cheguei a sentar-me no meio da vegetação e descer em modo de escorrega, já não consegui-a ter os pés assentes no chão, mal consegui-a andar direito... 
    Estava já a ver o abastecimento, mais um pico de energia e motivação, fico sem bateria no relógio, já não estava com paciência para o carregar, queria lá saber, tinha aguentado cerca de 44h, bem bom, consulto a minha cábula e faltariam cerca de 8 km para a meta, ao fazer a descida, antes do abastecimento um pequeno riacho, quando coloco os pés dentro de água, que alivio, saboreei o momento, o pessoal do abastecimento viu que não estaria nas melhores condições físicas e auxiliaram a minha subida até ao abastecimento. Foram incansáveis, perguntaram-me se estava tudo ok, disse que sim, apenas tinha bolhas nos pés, rapidamente perceberam o que queria dizer, pois já não me lembro como se diz em Espanhol... Ahahah... 
    Pediram-me para tratarem os pés e que furavam as bolhas, na primeira fase, rejeitei disse que no fim da partida permiti-a, agora só queria terminar, tinha receio de ser barrado e de demorarem o tratamento e o relógio da prova não ia parar. Deu-se uma verdadeira negociação, elas voltaram a insistir enquanto eu comi-a e bebi-a, então disse: "Concordo que me tratem os pés, mas deixam-me terminar a prova, ok?" Mostraram um sinal de acordo, mas tinha a noção que se a minha saúde estivesse em perigo, já não me deixariam sair dali...
    Retiro as meias e fiquei mais descansado, tinha muitas bolhas é verdade, desde os dedos, planta do pé, calcanhares, enfim, mas nenhuma tinha sangue, caso acontecesse isso, poderia ser sinal que mesmo ao sair dali, poderia condicionar a conclusão da prova, fiquei mais aliviado. Pouco tempo depois, uma rapariga dos voluntários dirige-se a mim e pergunta-me em Espanhol: "Sabe qual o mês que estamos?", fico surpreendido com a pergunta, fico calado e pensativo, por momentos baralhado e respondo: "Não estamos ainda em Agosto, estamos em Julho!" Percebo que a mente não trabalhava de igual forma, como se estivesse em modo off, mas com a pergunta, reativou, apenas estava um pouco bloqueada. Pensamos em tanta coisa durante estes dois dias, a mente trabalha a mil, sem descanso. De repente, uma pergunta da realidade temporal, fica meia bloqueada?... Ela continua: "Qual a localidade que ocorre a prova?" Voltei a hesitar em responder, por não saber o que queria, mas não tinha dúvidas que sabia onde me encontrava, respondi: "Val D'Aran, é a localidade, é isso que queres saber?" Ela disse que sim e deixou que as colegas realizassem o tratamento... Troco de meias e pronto para correr para a meta, queria abraçar a malta, agradeço a amabilidade e continuo a minha prova, tinha 3h30 para chegar à meta, tinha decorrido 44h30m desde a partida, saio com atitude, inicio, agora sim, a última subida...

A última descida...
    Esta subida foi realizada com uma mistura de sentimentos, mas com a atitude de vencer, o curativo tinha-me convencido mentalmente que estava tudo ok e que faria estes últimos km's com bom andamento. Quando começo a realizar a descida, pouco depois as dores voltam, estava outra vez em sofrimento, mas motivado, estava quase!!! Aproveito a vegetação para descer em modo de escorrega outra vez, mas de repente, lembro-me que posso-me magoar se espetar algo nas nádegas ou numa perna, não criando cenários mais violentos, levanto-me, agora todo o cuidado era pouco, não queria "morrer na praia". Estradão em modo de descida e uma paisagem top... Ao fundo, mas mesmo muito ao fundo via-se o vale, deduzo que por lá se encontra Vielha (a meta), não queria acreditar que tinha aquela descida de "sofrimento", tentava impor um ritmo, as lágrimas caiam, não estava a fase final facilitada, eu olhava para o relógio, estava desligado, tiro o telefone e controlo a hora, para saber se não estava a atrasar-me muito, tento correr, quase impossível sem dores, a cara fica novamente molhada, caramba, não quero terminar depois da hora, tinha de ir buscar forças algures, tinha de ignorar as dores, olho em redor e volto a ter a sensação de Dejá Vu, caramba onde já vi isto, aconteceu-me n vezes durante a prova, só podem ser paisagens semelhantes, de outras provas, ignorei mas aquela descida é impossível de a ter realizado, será que já estava mentalmente noutra dimensão? Vi-a atletas a passar por mim, as suas palavras eram motivadoras, passa alguém em sentido contrário, ia ao encontro de uma amiga, com umas palavras de incentivo e de carinho, anormais, agradeço de coração e senti que era uma pessoa diferente, com a maior gratidão lhe disse: "Oh, grato pelas tuas palavras, és muito carinhosa e meiga, só podes ser boa pessoa". Volto a chorar, mas a batalha continuava e não era aqui que queria ceder, surgem pessoas dizem as palavras certas e nada é por acaso, senti a alma e as forças a surgirem, mais uma corrida, tinha de "ser levado ao colo" para a meta. Sem saber como o fazer, o meu telefone apanha rede e as videochamadas do grupo que tinha criado com a família, toca, eles queriam saber como estava a correr, estavam ansiosos, com grande esforço, tiro o telemóvel, tento fazer videochamada, a mente não consegue funcionar, parece que já não sei trabalhar com novas tecnologias, gravo um vídeo, envio para o grupo, quase a dizer que estava vivo mas a sentir os parafusos a saltar... Ahahahah... Alguém inicia uma videochamada, aceito, entre gritos e palavras de incentivo vejo que o pessoal está em "pulgas" para que chegue há meta, o meu filho, incentiva com gritos, não tenho a noção qual a distância para o final... Digo que está quase, agradeço e desligo a chamada, tinha de me concentrar na prova, eles sabem que não gosto de falar em prova mas o momento era diferente...
    Após desligar a chamada, passo por dois agentes da autoridade, que aplaudem o meu feito, entro em brincadeira com eles, pois ainda faltava para a meta e o quase custa sempre, passa um português por mim, meto conversa, ele confessa que também vai cheio de bolhas, disse-lhe: "Opah, serra os dentes e siga até há meta", nunca mais o vi, espetáculo...
    Depois de muito trabalho mental, o conselho que tinha dado, teve de se virar contra mim, serro os dentes, começo a acelerar e a correr, mas as dores não desapareciam, a chorar começo a aumentar o ritmo quando sinto que o piso é mais macio e cada vez estou mais perto, no entanto, parece um sofrimento sem fim, tenho a sensação que oiço o "speaker" na meta, encontro pessoal nos trilhos a motivar, em francês me dizem que falta cerca de 2km, digo uma asneira no mesmo idioma, ou tento, passo a caminhar e continuo a dizer ainda faltam dois km??? Caramba, lá tento correr, pouco depois oiço um berro da alma... "Anda C@r@lho, mexe-te que está a quase!!!" "Mexe-me essas pernas", com orgulho, vos digo o meu filho veio ao meu encontro, top. Ele com a camisola do SLB vestida, não podia deixar passar esta oportunidade, camisola do glorioso fora de Portugal. Seguimos os dois para a reta final. Está com a bandeira portuguesa no pescoço, algo que antes tinha comentado que jamais o faria, que não queria ser nenhum parolo, mas estava envolvido no espirito, TOP!!! Pergunto-lhe, quanto falta, diz-me que cerca de 1 km, não imaginam o orgulho que tenho por este ser humano, sim é meu filho, está aqui para me levar ao colo se for preciso, sinto o orgulho que ele tem do pai ser um doido e ansioso para fazer a festa de cortar a meta, vibra com mais este meu feito, como de uma vitória do SLB se tratasse.  Rapidamente, coloco a bandeira no bastão, levo com orgulho a bandeira quase como a entrada para os jogos olímpicos, já nem precisava de bastões, tinha sentido um renovar de energias e vou correndo o que podia, quanto mais perto estava da meta, mais orgulhoso me senti-a, mais apoio vinha de qualquer lado, não só pela bandeira portuguesa, pelo meu feito e o respeito que senti-a por ter conseguido concluir este grande, mas grande desafio. Estava quase a terminar a prova mais difícil que decidi realizar até hoje, ia conseguir tocar o sino... Uau...

Tocar o sino...
    A cada metro percorrido, mais difícil estava de conter as lágrimas, sentia-me uma pessoa respeitada e admirada por todos aqueles que aplaudiam, quando entro na avenida principal, via-se a meta ao longe oiço os gritos de incentivo do speaker... O apoio do meu filho é constante, orgulhoso, percebo que está a fazer um direto para o grupo, mal consigo falar, apenas digo está feito, o Gil ao pé de mim quer cruzar a meta, o Lourenço em modo de gravação vai filmando a minha chegada, que apoio brutal...

Em direção à meta...


    Um esquadrão que me acompanha, sinto-me preenchido, completo, mas falta cruzar a meta, passo o bastão e a bandeira, as emoções estão ao rubro, gritam "Ronaldo" pela bandeira portuguesa é uma referência, cruzo a meta e ouve-me uma badalada...

O tocar do sino..

    Malta, confesso, quando o objetivo é concluído o orgulho é imenso, sinto-me invadido por uma série de emoções, pela primeira vez, pensei em desistir de corpo e alma, mas isso era falta de dormir... Ahahah... Cheguei a enviar uma mensagem ao Fernando a dizer que ia desistir, a sorte, é que eu não tinha rede, continuei como mandam as regras nestas provas um passo de cada vez, ao nosso ritmo, ressuscitei várias vezes, para isso, tem de se morrer, senti o corpo a querer desligar, acho que o liguei várias vezes ao meu desfibrilhador imaginário, a minha família e todos os que estavam a apoiar e a enviar mensagens, valeu a pena, só para este festejo final, quando olho para o Gil, chama-se Diogo, mas tenho esta mania de lhe chamar pelo apelido do meio e ele gosta, mas este festejo final, em que olhamos olhos nos olhos, batemos as palmas das mãos um no outro e simplesmente gritamos: "SIIIIMMMMM"

Objetivo superado...

     O nosso grito de guerra, a nossa cumplicidade, que ali se transforma e através de um simples grito, dizemos um ao outro, dei o meu melhor e consegui me superar, através do qual, mostramos a nossa raça e só devemos desistir se o corpo estiver em perigo... Um dia, não sei quando, mas talvez um dia penso nisso, posso ter de tomar uma decisão, para já ficou adiada mais uma vez, também porque ele estava na meta e não pudemos educar, sem mostrar que apesar das dificuldades, nós conseguimos atingir os objetivos a que nos propomos..

    Já com a medalha ao peito, sou invadido por mais emoções, como ainda não acreditava que tinha terminado, tinha sido mais uma vitória, com toda a humildade sinto-me orgulhoso, a mente percorre todo o sofrimento em prova e as lágrimas caem outra vez, os óculos protegem-me mas não consigo parar de me sentir enorme.. Ops, já me repeti... Ahahah... 

Mais uma emoção



Ser finisher...
FINISHER

    Ser finisher nesta prova, é sentir uma avalanche de emoções. Desde a superação, adrenalina... Era capaz de debitar uma série de emoções e afins, só um ultra sabe o que se sente e o quão viciante pode ser, participar em provas como esta. 
    Confesso que apesar de pesquisar, estudar a prova e tentar programar os tempos de passagem nos diversos pontos, esta foi a primeira edição, ninguém estaria a contar com tal violência, muitas horas de treino partilhadas com uma excelente companhia, mas com toda a humildade digo que é necessária muita persistência e resiliência para concluir este objetivo. Em alguns vídeos que fomos seguindo antes da prova, alguém referiu que não seria a forma mais inteligente de alcançar a inscrição no UTMB, na altura descredibilizamos, comentamos mas sem dar a importância devida, mas subscrevo na íntegra, não foi a forma, nem é a mais fácil de o conseguir, somos testados num limite extremo, também sei que existem provas bem piores, mas esta foi uma "biolência". Não esquecendo o comboio de emoções que vivi, talvez esse que me tenha "colhido", pois saí desta prova com um empeno brutal, com uma calma anormal e um ser humano melhor. No pós prova, fomos invadidos por uma intoxicação contraída em prova provocou-nos problemas intestinais durante alguns dias e uma fraqueza acima do normal, atrasando a recuperação. 
    Tal como, precisa de referências algumas frases são importantes e vou "colecionando", partilho com vocês:

"A dor é passageira, mas a glória é eterna"
"Das pequenas vitórias, alcançamos grandes feitos!"
"Sem sacrifício, não há vitória!"
"Nunca melhor que ninguém, apenas melhor que ontem!"

    Poderia adicionar outras tantas, mas é sim preciso ter coragem para estar na linha da partida e respeitar a montanha, porque somos pequenos e em qualquer prova, em qualquer momento, podemos ser esmagados pela imponência destas, nesta prova senti-me pequeno, muito pequeno, a sentir que seria desta vez que iria ceder, mas o segredo está em caminhar e criar pequenos objetivos, assim, consegui concluir esta prova depois de 47h37m08s, na classificação geral em 468º e na posição de escalão 232. Para ficarem com uma ideia, do total de participantes nesta prova de 100 milhas (VDA), partiram 951 e apenas concluíram cerca de 50%...
    O Fernando, concluiu a prova em 42h26m43s, na posição da geral 262 e 49ª do escalão, que prova excelente, parabéns my friend!!!

Conclusão
    Sobre a prova, tirando a intoxicação, uma prova que só tem probabilidade de crescimento, pelas marcações nota 10 e pelos abastecimentos, nada a apontar!!! O futuro, requer as melhorias habituais que a experiencia trará, chegará a uma prova de referência mundial... Se vou repetir? Malta, ainda não me esqueci desta...
   Agradeço a todos os meus torcedores, antes, durante e depois da prova, em especial à minha família com os vídeos diretos e com o apoio incondicional, viveram-se momentos inesquecíveis, muita emoção e muito apoio do qual fiquei surpreendido por ter sido tão bem acompanhado, virtualmente e espiritualmente todas as noites de prova, sem o vosso apoio seria muito mais difícil, sei que viveram a prova de corpo e alma, tal como eu, mas vocês no sofá... Ahahah
    Até hoje, ainda me arrepio, me emociono ao descrever e a reviver todos os momentos, pelo apoio, pelas emoções vividas em conjunto e também as emoções vividas em modo de "Lobo Solitário", neste desafio, experienciei momentos únicos, imagens minhas e "meditações" únicas. Surpreendido pelo apoio sentido vindo de pessoas que não pensaria viver. 
    Ao Lourenço, grato pelo acompanhamento e pelo vídeo excelente da minha conclusão!!!
    Ao meu filhote, um especial "SIIIIMMMM", esta saiu do corpo e estiveste em grande, sem o teu empenho seria mais difícil. 
    A minha filhota, sofria do lado de cá, um grande beijinho. Amo-vos. 
    A minha mãe, sei que sofre muito e sempre queria estar mais perto, estás no coração, velhota.
     Jessy, Dany e Rafa, estiveram o tempo de prova quase sem dormir, sofrendo e torcendo à vossa maneira e pela mensagem de incentivo na fase final, grato, Adoro-vos.
  
    Para terminar, ao meu companheiro de prova, Fernando, sem ti isto seria impossível, tantas horas de treino e de muito castigo pela Freita, isto deu frutos, estamos juntos na luta, eu em modo tartaruga... Ahahahah...
    Ao meu Coach, temos muito trabalho pela frente, mas estou a gostar dos resultados...

    A vocês, que leram isto até ao fim, espero que tenham gostado, mas não conseguia fazer um texto mais curto, desculpem.

Espero que tenham gostado desta aventura!!!


    Só por hoje, sou grato!!! Vocês são fantabulásticos!!!

As crónicas vão continuar, no final do mês de Agosto, pelas montanhas dos Alpes, verdade malta, mais 170 Km, com 10.000 d+, na grande prova internacional 
    ULTRA TRAIL MONT-BLANC (UTMB)...

Lobo Solitário nos trilhos... Aqui sinto-me vivo e em casa... Até breve!

 







 



    





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